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Politicamente correto e censura na MSP

  • Foto do escritor: Micaela Crispim
    Micaela Crispim
  • 17 de jul. de 2022
  • 18 min de leitura

Não é de hoje que o debate entre politicamente correto e liberdade de expressão dá o que falar. No que diz respeito à Turma da Mônica, tenho visto discussões do gênero se intensificando principalmente por causa das histórias da segunda e terceira série da Panini (ou seja, de 2015 pra cá). Muitas acusações são feitas ("isso é culpa dos militantes do Twitter!"), palavras são jogadas ao vento ("geração mimimi") e não faltam especulações sobre o futuro dos gibis ("a MSP está fadada ao fim"). Hoje trago uma análise sobre esse tema tão discutido e compartilho o meu ponto de vista sobre a questão.


Antes de começar a falar sobre o politicamente correto nos dias de hoje na MSP, precisamos voltar no tempo e entender o fenômeno de autocensura nos quadrinhos iniciado nos Estados Unidos. De maneira beeem resumida, o que aconteceu foi o seguinte:


Em meados dos anos 50, a influência das histórias em quadrinhos sobre as crianças começou a ser amplamente discutida nos EUA. Diversos grupos sociais alegavam que as HQs da época, principalmente as de horror, eram más influências para os pequenos. Nesse contexto destaca-se Fredric Wertham, que em 1954 publicou o livro Seduction of the Innocent, onde acusava as revistas em quadrinhos de subverter as crianças e estimular a delinquência juvenil. Em defesa da infância, os gibis tinham que acabar!


O debate se tornou acalorado e alcançou até mesmo o senado estadunidense, que não conseguiu correlacionar a criminalidade infanto-juvenil com a leitura de quadrinhos. Ainda assim, no mesmo ano surgiu a Comics Magazine Association of America, associação responsável por criar o Comics Code, um código que regia quais conteúdos eram ou não apropriados para uma história em quadrinhos. Cenas de violência explícita, erotismo e até mesmo as palavras "horror" e "terror" foram banidas, além de zumbis, vampiros, lobisomens e outros monstros. Os vilões sempre deveriam perder para os mocinhos e não podiam causar simpatia no público, entre outras determinações. As editoras da época submetiam seus roteiros a tais regras e os gibis aprovados exibiam um selo na capa, sinalizando que o material em questão não ofendia a moral e os bons costumes. Esse selo não era obrigatório, mas a ausência dele quase sempre implicava que as revistas não seriam comercializadas.


Um código de ética similar foi criado no Brasil em 1961. Contudo, teve baixa adesão, talvez porque não fizeram um selo maneiro que nem os americanos. As regras do código brasileiro eram menos específicas, mas também restringiam o uso de gírias, prezavam pelo respeito às autoridades e estabeleciam que o bem sempre deveria vencer o mal, etecetera, etecetera.


Com o passar dos anos, a Comics Code Authority começou a perder sua relevância. Em 2001, a Marvel Comics deixou de submeter suas histórias ao órgão regulador e passou a utilizar um código próprio. Dez anos depois, as últimas duas grandes editoras que ainda usavam o selo de aprovação, DC e Archie Comics, também o abandonaram, adotando um sistema interno e decretando o fim do Comics Code. Além disso, nesse meio tempo o número de quadrinhos voltados exclusivamente para o público adulto cresceu.


Como eu disse antes, essa é uma versão sucinta dos fatos. Para quem quiser saber mais sobre o assunto, recomendo ler Comics Code History: The Seal of Approval, Essas horríveis histórias em quadrinhos e Perseguição e censura aos quadrinhos no Brasil.


Ok, e onde a MSP entra nisso?

No ano em que o código de ética brasileiro foi aprovado, Bidu estrelava sua revista homônima ao lado do Franjinha pela Continental. No entanto, essa editora não aderiu às regras de publicação, então imagino que não houve nenhum impacto nas histórias produzidas na época. Da mesma forma, as tiras de jornal não eram reguladas pelo código.


O primeiro gibi da Mônica foi lançado em 1970 pela Abril, umas das editoras responsáveis por criar a versão brasileira do código de quadrinhos. Entretanto, considerando que as regras tinham sido elaboradas há quase 10 anos e que elas não fizeram muito sucesso pra início de conversa, concluo que elas não podaram ou limitaram o que era escrito naqueles tempos, ainda mais porque não há nenhum relato do Mauricio de Sousa quanto a isso.


Basicamente, o que eu quero dizer é que naquela época o pessoal escrevia o que dava na telha. Por mais que o tom das histórias da Turma da Mônica fosse voltado principalmente para a comédia e aventura, cenas violentas e absurdas não eram incomuns no que os fãs chamam de "Antigo Testamento".



Para exemplificar, deixo aqui um vídeo do canal Tudo Sobre a Turma da Mônica, onde o William comenta nove histórias bem fora da casinha da turma, sendo que seis dela são da Abril. Ah, e vale ressaltar que as escolhas dele para esse vídeo foram até que bem tranquilas, considerando o que era publicado nos jornais (as tiras do Penadinho eram super pesadas!). Nem preciso dizer que hoje em dias vários roteiros antigos jamais seriam publicados.



Mesmo sem submeter suas histórias a um código de censura e respaldado pelo que era considerado normal há 50 anos, Mauricio não estava isento de críticas. Em uma entrevista dada ao Globo Rural em 2018, o cartunista contou que o sotaque do Chico gerou uma polêmica nos anos 80:

"Foi no tempo da ditadura. Um vereador de uma cidade do Sul entrou com um movimento que chegou até Brasília para proibir o Chico Bento de falar “caipirês”. Segundo ele, estava prejudicando o aprendizado do português da criançada. E fez um movimento que estava em vias de conseguir um decreto proibindo o Chico. Chegaram até a ameaçar a Editora Abril de suspender a revista. Mas uma criançada de Brasília fez uma passeata com cartazes, pedindo para não mexerem na fala dele, porque gostavam daquele jeito. E parece que aquilo mexeu com o Congresso, porque pararam de amolar e botar para frente o tal decreto que proibia tudo."

Na mesma linha do preconceito linguístico contra o núcleo do Chico, tenho a impressão de já ter visto relatos de um movimento organizado por pais alegando que o Cebolinha também seria uma má influência no aprendizado das crianças. Não consegui achar nenhuma reportagem confirmando isso, então provavelmente é só um fruto da minha imaginação.


Fonte: confia


Em diversas entrevistas é possível encontrar falas do Mauricio a respeito do politicamente correto e assuntos polêmicos. Nas palavras dele em 2017 para o Omelete:

"Eu sempre oriento que evitem assuntos polêmicos e politicamente incorretos. Não que eu adore o sistema de vigilância que existe atualmente, mas os costumes mudam, e os personagens têm que acompanhá-los. No entanto, não devemos levantar bandeiras. Temos que pegar a bandeira que está passando. Me cobram muito: onde estão os personagens gays? Eu respondo: estão esperando o momento em que serão vistos com naturalidade pela sociedade. Eu não quero me adiantar, mas também não quero perder o bonde."

Já em 2019 para a Época Negócios, ele disse:

"Eu não mudei. O mundo está mudando. Veja as marchas que estão acontecendo, com pessoas assim cada vez mais aceitas e compreendidas e participando de uma revolução social", diz Mauricio. "Não somos nós que estamos criando, é a sociedade. No momento em que o mundo estiver esclarecido para esse tipo de situação, será o momento de botarmos na nossas histórias gays ou transexuais [sic]. Estou aguardando essa evolução." No entanto, ele diz que não se trata de se curvar ao politicamente correto e que isso não deve ser uma preocupação. "Um profissional que trabalha com criação acha uma saída. Se não pode usar uma palavra ou situação por causa do politicamente correto, busca outro caminho. Um criativo não pode se acovardar nem fugir dos desafios. Se a sociedade muda e proíbe ou acha esquisito isso e aquilo, a gente faz de outro jeito."

Em consonância com os trechos acima, Mauricio se adaptou às mudanças da sociedade, como contou para a Folha em 2018:

Entre as poucas viradas comportamentais que tiveram influência em suas histórias, ele cita duas: Chico Bento não solta mais balão —“algo que eu fazia quando criança, mas que hoje é considerado errado”— e Cebolinha não picha mais o muro para provocar a Mônica, retratando-a como dentuça.

Também em 2018, dessa vez para o Universo HQ:

Durante essas mais de quatro décadas, Louco passou por outras transformações, além da mudança de estilo dos roteiros nas suas histórias. O visual, antes mais fiel a quem lhe serviu de inspiração, acompanhou o traço mais “rechonchudo” das outras criações da Turma da Mônica e, na área do politicamente correto, não escapou de se adaptar aos novos tempos. “Por precaução e respeito, ele agora não pula mais do muro para fugir de alguma clínica, não mora num hospício e não termina as historinhas amarrado numa camisa de força, como acontecia antigamente”, explica Mauricio de Sousa.

Neste mundo com patrulha ostensiva você chegou a ouvir reclamação quando, por exemplo, Nhô Lau espanta Chico Bento e sua turma a tiro? "A sociedade sempre está em movimento e não colocamos mais essa cena. Não há mais armas em nossas historinhas."

Nota-se que nesses pronunciamentos a posição do autor é sempre a mesma: ele acredita que deve acompanhar as mudanças da sociedade e não pretende se apressar para alterar algo antes que o público reivindique e/ou esteja "pronto" para isso. Logo, da mesma forma que as grandes editoras de quadrinhos estadunidenses desenvolveram seu próprio código de ética, a MSP começou a alterar suas regras internas de acordo com o que se tornava socialmente aceitável e, é claro, com a pressão do público.


Chamem as tiazinhas!

A Associação das Tiazinhas Politicamente Corretas é uma organização que vira e mexe dava as caras nas historinhas da turma. Para facilitar, vamos chamá-la apenas de ATPC. Surgiu na primeira série da Panini, mas as referências ao politicamente correto existiam desde a era Globo. As tiazinhas politicamente corretas monitoravam os conteúdos dos gibis e estavam sempre prontas para reclamar com a MSP (diretamente ou através de cartas) caso vissem algo que considerassem inadequado. As problematizações da ATPC muitas vezes eram infundadas e só serviam para tirar a graça das histórias. As tiazinhas não chegavam a ser pintadas como vilãs pelo roteiro, mas definitivamente eram uma pedra no sapato, daquelas bem chatinhas. Para ter uma ideia, nem a Mônica conseguiu escapar do radar da ATPC.



De vez em quando a turma do Penadinho também tinha que encarar críticas, oras por ser muito assustadora, oras por ser muito boba.



Não seria exagero dizer que a ATPC e as menções ao politicamente correto nada mais eram do que uma forma dos roteiristas ironizarem as críticas que o estúdio recebia, vindas principalmente de pais e responsáveis, mas também de organizações civis. Aparentemente tinha um pessoal que reclamava de tudo!


Arrisco dizer que a ATPC foi criada pelo Paulo Back. Ele costumava fazer vários roteiros na década de 90 e nos anos 2000 (últimas edições da Globo e início na primeira fase da Panini) mostrando a reação dos leitores aos acontecimentos dos gibis. As histórias do Mister B são um exemplo claro disso. Nelas, o mascarado revelava os maiores mistérios das HQs e podíamos ver os comentários do público como se fosse em tempo real.


Certo, histórias com metalinguagem e quebras da quarta parede não eram novidade e existiam desde os tempos da Abril, especialmente com o Bidu. Vez ou outra a MSP mostrava que ouvia os leitores e incorporava a opinião deles, tanto que havia uma seção nos gibis destinada às mensagens e sugestões dos fãs. Mas foi a partir de meados dos anos 90 que as referências ao politicamente correto começaram a dominar os quadrinhos.


Outra pessoa que ironizava as reclamações das tiazinhas era o Emerson Abreu. Mariazinha-vai-com-as-outras! é um exemplo clássico. Os roteiros emersonianos são famosos por terem doses de terror e humor muitas vezes considerados impróprias para crianças, e eu li por aí que no início nem as típicas caretas e línguas-pra-fora eram aceitas. Pra ser sincera quanto aos elementos sinistros, quando eu era pequena tive pesadelos depois de ler Uma história de balões e sonhos e mesmo adulta fiquei traumatizada quando li O baratão, então talvez a ATPC não estivesse tão errada assim nesse caso.



Daria pra fazer um artigo só sobre o Emerson e o politicamente correto. Aliás, foi o que fizeram os autores Rodrigo, Aline e Alexandre no trabalho intitulado Radicalismo e Inovação: as contribuições criativas de Emerson Abreu nas estratégias narrativas do universo da Turma da Mônica, onde eles discorrem sobre as polêmicas envolvendo o roteirista, entre outras coisas. Mais uma recomendação pra vocês!


Flávio Teixeira foi mais um a bolar tiradas maravilhosas envolvendo o politicamente incorreto, e imagino que outros roteiristas também tiveram sua cota de piadas do tipo.



Agora a MSP foi longe demais!!! 😡😡🤬

Se de um lado havia aqueles que exigiam historinhas mais comportadas, em contrapartida existiam aqueles que achavam tudo isso uma grande besteira. O que rolou foi mais ou menos o seguinte:


Tiazinha: "O quê?! Como assim o Cascão chafurda na sujeira que nem um porco?? ISSO É UM ABSURDO!!! Quero meu dinheiro de volta!"

MSP: "Nossa, onde que eu tava com a cabeça? Você tem razão, tiazinha! Prontinho, mudamos isso. A partir de hoje Cascão é uma criança ecologicamente consciente que não estimula a imundície e se diverte apenas com brinquedos construídos a partir de material reciclável, espero que tenha gost-"

Fã saudosista: "O quê?! Como assim o Cascão NÃO chafurda na sujeira que nem um porco?? ISSO É UM ABSURDO!!! Quero meu dinheiro de volta!"


Pois é, não dá pra agradar a todos. Muitos leitores "puristas", por assim dizer, são contra as reformas feitas pela MSP nos últimos tempos. Segundo eles, essas alterações mudam totalmente a essência dos personagens e as tiazinhas não passam de umas frescurentas. Ver o Cascão longe do lixo e em algumas ocasiões lavando as mãos causou um trauma tão profundo em certos fãs que toda a sua infância foi arruinada. A parada é séria!



No site Arquivos da Turma da Mônica, há duas postagens (aqui e aqui) onde o autor fala sobre o início das mudanças politicamente corretas e deixa sua opinião:

"Como podem ver, o politicamente correto estragou com as histórias e as características dos personagens. Ficam a favor de não dar mau exemplo, mas estragam com as histórias, fora que não dá liberdade para os roteiristas criarem do jeito que querem, o que considero pior."

Pelos protestos sarcásticos dos roteiristas, podemos concluir que de fato o politicamente correto limitou a sua criatividade. Contudo, os autores conseguiram contornar as barreiras impostas pela ATPC da vida real ao fazer histórias ironizando as tiazinhas e de quebra criando um novo tipo de piada recorrente. Acredito que se uma pessoa tem talento ela vai criar bons roteiros de qualquer forma.


E não é porque os personagens de Mauricio de Sousa não envelhecem que as crenças do autor também devam ficar paradas no tempo. É natural que uma obra que existe há décadas se altere. Por mais que a gente sinta falta dos "bons e velhos tempos", temos que aceitar que a mudança é inevitável. E se algo vai mudar, que seja pra melhor, né?


Creio que a princípio moderar algumas cenas e falas, ou seja, formular um código de ética, era mais do que necessário. O politicamente correto não é de todo mau. Foi graças a ele que discussões sobre inclusão social e acessibilidade se intensificaram na MSP, e olhe lá! Antes da virada do milênio a representatividade nos gibis da turma era quase nula. Basicamente tínhamos o Jeremias e Pelezinho, personagens negros inicialmente desenhados com estereótipos racistas; Papa-Capim, que também era carregado de preconceitos; e Humberto, que sempre era alvo de piadas com sua mudez. Sem contar que Pelezinho até teve sua revista própria, mas Jerê, Papa-Capim e Humberto tinham pouquíssima relevância. De vez em quando aparecia um ou outro figurante de uma minoria, normalmente lotado de estereótipos.


Então, em 2002 surge André, um garoto autista. Em 2004 é a vez dos queridos Luca (cadeirante) e Dorinha (deficiente visual). Conhecemos a Tati, que tem síndrome de Down, em 2009. Igor e Vitória (soropositivos) são apresentados em 2012. Em 2017 Chico Bento Moço traz uma edição sobre Violette, cuja perna foi amputada após um acidente. Jeremias ganhou o merecido desenvolvimento na graphic Pele em 2018. Edu (portador da distrofia muscular de Duchenne) e Haroldo (epiléptico) dão as caras em 2019, mesmo ano de estreia da Milena, uma garota negra assim como Tábata, criada em 2020. E em breve, Sueli chegará como a primeira personagem surda da turma.


Esses e outros avanços são importantes, mas é necessário salientar que não são o suficiente e que a MSP demorou muuuito pra incluir cada um desses personagens. E como vocês mesmo puderam ver pelas entrevistas dadas pelo Mauricio, ele não tem pressa em aumentar a diversidade, o que eu considero muito triste. Se a turma da Mônica hoje em dia é mais inclusiva, isso se deve em grande parte pelas pressões feitas pela sociedade e pela ATPC da vida real. Ponto para as tiazinhas.


Maaas, em certos aspectos os saudosistas também têm sua razão. Atualmente, com a cultura do cancelamento o medo de se publicar algo ofensivo ficou cada vez maior, o que levou a uma hiperproteção das crianças e uma vigilância constante nos conteúdos infantis. E pra falar disso vamos entrar em outro tópico.


Reescrevendo o passado, o presente e o futuro

Resumindo o que vimos até agora, com a pressão das tiazinhas e uma pitada de semancol da MSP, aos poucos o código de ética da empresa foi sendo moldado. Não temos acesso aos regimentos internos, mas com base no que foi banido dos quadrinhos dos anos 1990-2000, dá pra imaginar algumas regras, como:

  • Armas (mesmo que sejam de brinquedo) são proibidas;

  • Os meninos devem colar cartazes ao invés de desenhar diretamente nos muros;

  • Nhô Lau não deve perseguir as crianças com uma espingarda de sal;

  • A soltura de balões é proibida;

  • Cascão não deve brincar no lixão;

  • Palavrões, mesmo que censurados (tipo 💀@💥⚡#👺!) são proibidos;

  • Piteco não deve aparecer carregando uma clava;

  • O furto de goiabas pelo Chico deve ser evitado;

  • Personagens como o Diabão e diabinhos são proibidos;

  • Expressões como "droga!" e "diacho!" devem ser evitadas ou substituídas por "puxa!" ou "bolas!", assim como "azar" deve ser trocado por "má sorte" ou "uruca";

  • Piadas de duplo sentido são proibidas;

  • Cenas violentas devem ser evitadas;

  • Camisas de força e hospícios em histórias do Louco são proibidos;

  • Discriminações e xingamentos devem ser evitados;

  • Bandidos e crimes são proibidos.

Acho que deu pra ter uma ideia de quais eram as diretrizes para os novos roteiros. Mas e quanto às centenas de histórias publicadas antes dessa reforma? Bom, não adianta chorar sobre o leite derramado. O jeito era alterar os elementos considerados problemáticos nas republicações feitas em almanaques e edições especiais. Só que nem sempre o resultado final ficava bom ou fazia sentido. Um caso bem famoso é o das armas de mafiosos que foram trocadas por lagostas (?). A seguir uma explicação do Jornal do Limoeiro sobre o ocorrido (infelizmente não consegui encontrar o link do Insta desse perfil).



Outros exemplos de edições feitas em republicações:

Créditos ao Daniel Alencar que disponibilizou as imagens no grupo PitangueiraPosting


Muitos fãs concordam que as censuras mostradas acima são infundadas e desnecessárias (e frequentemente mal feitas - é perceptível quando mudam uma palavra/desenho e a cena costuma perder o sentido). No último exemplo que coloquei, "é mesmo" foi trocado por "obrigado", e não consigo entender o motivo dessa mudança. Ao meu ver são expressões completamente inofensivas, e parece que há um medo muito grande de ferir a sensibilidade frágil dos leitores. Em outros casos, como na fala do vampiro sobre cólera e AIDS, fica mais fácil de compreender a causa da alteração.


Mas será que esse é o caminho certo para "corrigir" os erros do passado? Ou seria essa uma forma de apagar o histórico problemático da MSP? É difícil admitir que uma obra tão querida da nossa infância tem defeitos, mas é necessário confrontar a realidade, por mais que ela seja desconfortável. Temos tendência a passar pano para objetos do nosso afeto, mas precisamos encarar os fatos: Mauricio (e seus funcionários) fizeram sim histórias reprováveis. Apagar expressões sexistas, racistas, homofóbicas ou com qualquer outro tipo de discriminação não protege as minorias atacadas, e sim a empresa que atacou.


O ideal em republicações seria contextualizar a obra, como foi o caso da Coleção Histórica, que trazia comentários do Paulo Back explicando piadas e referências que atualmente não fazem mais sentido. E como o próprio William apontou no seu vídeo, Paulo diz que as cenas e diálogos absurdos eram comuns na época em que foram escritos. Porém, dá pra perceber que o espaço para a análise na Coleção Histórica é limitado e ainda assim houve censura em alguns elementos. Ao meu ver, o melhor seria republicar as histórias originais inalteradas, acompanhadas de um texto detalhando quais são os problemas presentes. Deixo aqui um vídeo do Alexandre Linck que complementa a minha visão, recomendo que vejam!



Polêmica!!

Como já ficou bem claro, a política atual da MSP é varrer as polêmicas para debaixo do tapete sempre que possível, além de fazer de tudo para não manchar sua imagem com a opinião pública. Mas para a infelicidade da empresa, de vez em quando as historinhas dão o que falar (e não é coisa boa).


Em 2009, a história de abertura da sexta edição do gibi da Tina, chamada O triângulo da confusão, fez justiça ao seu nome. Se você não ficou sabendo ou não se lembra, o que aconteceu foi o seguinte: nesse roteiro, Pipa desconfia (sem nenhuma prova) de que Tina está traindo seu namorado com um rapaz chamado Caio. No final descobrimos que tudo não passava de um mal-entendido, e fica implícito que Caio está comprometido com outro homem:


Esses dois últimos quadrinhos, com uma implicação tão sutil e ambígua, fizeram com que pais e responsáveis de todo o país fossem reclamar com a MSP por estar pervertendo as suas pobres crianças, foi um escarcéu danado. Li relatos de que os estúdios foram ameaçados e a empresa recebeu inúmeras cartas com mensagens de ódio. Não consegui encontrar reportagens da época que confirmem isso, mas não é difícil de acreditar que algo do tipo ocorreu. Afinal, dez anos após o lançamento desse gibi, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ordenou o recolhimento de uma HQ que retratava o beijo entre um casal gay. Há alguns meses a revelação de que Jon Kent, filho do Superman, é bissexual causou revolta em leitores do mundo todo. Os artistas chegaram a receber ameaças de morte e precisaram da proteção da polícia. Se em 2019 e 2021 essas publicações sofreram ataques homofóbicos, não seria nenhuma surpresa saber que algo similar também ocorreu em 2009.


Com toda a repercussão gerada pelo Caio, Mauricio não confirmou se o personagem realmente é gay e disse que a sexualidade dele depende do leitor (o gay de Schrödinger!). Todo esse alvoroço ajuda a explicar porque até hoje infelizmente não temos um personagem assumidamente LGBTQIA+ nos gibis de distribuição mensal da MSP e porque o Mauricio demonstra ser tão temeroso a respeito desse assunto. Na graphic Respeito conhecemos Kátia, uma colega de trabalho de Tina (olha ela sempre no meio da bagunça!) que se declara lésbica. Como esse selo de publicação é menos conhecido e voltado para um público mais velho, o impacto da revelação da Kátia foi menor que as entrelinhas de Caio. Aliás, as graphics MSP representam um avanço na discussão de temas considerados sensíveis, mas que deviam ser apresentados normalmente para as crianças.



Por conta do conservadorismo muitos pais evitam educar seus filhos e conversar sobre temas sensíveis, mas fundamentais para a sua formação. A escola, que também deveria ensinar sobre esses tópicos, é impedida por essa tentativa infundada de proteger as crianças do "Mal" que as ronda. Daí surgem projetos torpes como o Escola Sem Partido e uma população cada vez menos capacitada a pensar por si só.


Ao invés de tentar esconder os piores aspectos da nossa sociedade, deveríamos ensinar as novas gerações a reconhecer os problemas que uma hora ou outra elas terão que enfrentar e, mais importante ainda, como elas devem enfrentar.



Abro um parênteses para falar sobre a Turma da Mônica Jovem e o Chico Bento Moço, que surgiram em 2008 e 2013, respectivamente, na era pós-ATPC. Ambas as publicações eram voltadas para adolescentes e em todo lugar se via anúncios de que seriam abordados temas mais maduros, como sexo, drogas e (rock'n'roll) bebidas. As capas das revistas traziam uma recomendação: "Aconselhável para maiores de 10 anos". CBM até tratou de alguns assuntos mais sérios, mas a TMJ deixou bastante a desejar. No máximo tinha uma ou outra piadinha sutil sobre sexo. Em 2017 a classificação indicativa dessas revistas aumentou para maiores de 12 anos, e novamente o público esperou enredos mais complexos. Não rolou. No geral, as edições tratavam de assuntos leves e quando traziam enredos maduros, tudo era feito com bastante cuidado para não ofender a moral e os bons costumes, o que geralmente significava que o tema era abordado de maneira rasa ou simplesmente inadequada.


Claro que há exceções. Em Chico Bento Moço, posso citar O filho do Chico, Balada à fantasia, Diferente e Agronomíadas (edições 11, 16, 41 e 55, respectivamente), que tratam sobre gravidez não planejada, golpes como Boa noite, Cinderela e inclusão social. Na Turma da Mônica Jovem o bullying é abordado com frequência e há até mesmo uma história só sobre isso (Bullying além do limite - TMJ nº 45, 1ª série). O outro lado da moeda (TMJ nº 43, 2ª série) tenta versar sobre saúde mental, mas falha miseravelmente. Entre a luz e a escuridão (TMJ nº 18, 2ª série) teve mais sucesso nessa empreitada. Transtornos alimentares como bulimia e anorexia não chegaram a ser abordados diretamente, mas estão presentes nas edições O aniversário de 15 anos da Marina e O peso de um problema (TMJ nº 26-28 e 33, 1ª série). Em Férias na praia (TMJ nº 78, 1ª série), o vilão Cúmulus é revelado como um homem violento e que abusa do álcool. Posteriormente, ele protagoniza uma cena de assédio sexual envolvendo a Magali.


Essas histórias me impactaram devido à seriedade dos temas abordados. É essencial que esse conteúdo seja visto por leitores de todas as idades, principalmente crianças e adolescentes, que estão adquirindo novas informações e construindo sua visão de mundo.


A MSP nos dias de hoje

Atualmente, muitos leitores se queixam da queda de qualidade das histórias da MSP, tanto nos roteiros quanto nas artes. Conjectura-se que a alta demanda de novas historinhas sobrecarrega os roteiristas e desenhistas, que não têm tempo o suficiente para criar um bom material. Esse pensamento tem lógica. Uma produção em larga escala muitas vezes resulta em um produto final de baixa qualidade.


Não tenho propriedade alguma para falar sobre as artes, e esse nem mesmo é o foco deste artigo. Quanto às narrativas construídas, também alega-se que elas deixam a desejar pelo medo da MSP de abordar assuntos polêmicos. Todas as histórias têm um final feliz e uma lição de moral, que nem mesmo é colocada de maneira sutil. Nessa nova onda de roteiros certinhos, a Milena acabou se tornando uma personagem sem personalidade própria ou desenvolvimento. Afinal, por representar uma minoria ela deve ser moralmente perfeita e nunca cometer um erro sequer. Não demorou muito para que ela começasse a ser criticada pelos leitores por ser "muito chata" ou "sem sal". O fato é que a Milena não é a única que sofreu com essas mudanças, uma vez que até mesmo os protagonistas foram descaracterizados em prol de diálogos e cenários idealizados. Um exemplo disso são as tiras feitas para o projeto Donas da Rua, onde tudo é belo e maravilhoso:



Nós sabemos que a vida real não é assim. Crianças de verdade não falam desse jeito e nem resolvem seus conflitos somente na base do diálogo e da amizade. Convenhamos, nem os adultos mais racionais fazem isso! Será que um leitor mirim consegue se identificar com personagens que nunca erram? Acho que a minha versão de 10 anos ficaria frustrada ao ver crianças tão perfeitas, pois eu nunca poderia ser tão imaculada quanto elas. A minha versão atual com certeza fica decepcionada ao ver modelos tão irreais a serem seguidos. Pessoas de verdade são falhas, e é a partir dessas falhas que devemos aprender a ser indivíduos melhores.


Acredito que a MSP pesou a mão na sua tentativa de ser vista pelo público como uma empresa inclusiva e engajada socialmente (sem incluir pessoas LGBTQIA+ e quase sempre deixando de lado os personagens indígenas e com deficiência, é claro). Se antes tudo era válido e não havia regras sobre o que podia ser publicado, agora há precaução demais. Falta equilíbrio. É óbvio que histórias fazendo chacota de minorias não devem mais ser aceitas. Mas os roteiristas devem ter liberdade para criar historinhas que nem sempre vão ter uma lição de moral, e sim piadas bobinhas. Tudo isso sem tirar a essência dos personagens imperfeitos que amamos. Percebo que com as críticas dos fãs, a MSP aos poucos está reconquistando esse equilíbrio. E de uma coisa eu sei: por mais que se esforce, a empresa nunca conseguirá agradar a todos e ainda se manter na sua zona de conforto. É necessário escolher aquilo que é mais importante para si. Nesse momento, é a segurança e a opinião dos mais conservadores, além da estabilidade econômica. Espero que no futuro seja criar histórias que nos convidem a rir, pensar e se emocionar.

Ufa, esse texto ficou enorme! Agradeço se você leu até aqui e quero saber qual a sua opinião sobre esse assunto. Você concorda comigo? Me conta nos comentários!


Até a próxima! :D

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